Seria preciso regredir à primeira metade do século XVIII e aos tempos
do absolutismo para compreender o grau de barbárie a que o economista
Guido Mantega foi submetido na manhã de quinta-feira. Você provavelmente
já sabe: acompanhando a mulher que era submetida a uma cirurgia para
operar um câncer, no Albert Einstein, em São Paulo, Mantega foi retirado
do local pela Polícia Federal, que cumpria um mandato de prisão
assinado pelo juiz Sérgio Moro, revogado após cinco horas.
Naquela longa fase da história da humanidade anterior ao nascimento
dos direitos humanos como um valor universal, o suplício de pessoas
condenadas – não é o caso de Mantega, diga-se – ocorria em praça
pública. Antes de serem executadas, eram torturadas e, em alguns casos
esquartejadas. A multidão aplaudia numa espécie de transe, e até pedia
mais. Profissionais da morte e do sofrimento, os carrascos chegavam a
ser personagens populares nas grandes cidades. Minutos antes de perder a
cabeça na guilhotina de Paris, o revolucionário Danton pediu ao matador
que a mostrasse ao povo reunido na praça da Revolução -- hoje da
Concordia -- pois queria que a multidão visse “como é bela”.
Tentando explicar essa imensa evolução no direito e na sensibilidade
humana, a historiadora Lynn Hunt lembra, num livrinho particularmente
instrutivo, (“A Invenção dos Direitos Humanos”) que a noção de que todos
são iguais perante a lei e assim devem ser tratados, é uma novidade
recente da civilização, embora seja uma ideia tão repetida que parece
ter vigorado já na idade das cavernas.
Na realidade, não chega a ter 300 anos de existência no passado deste
bípede que anda pela Terra sabe-se lá quantos milhares de anos. Para
Hunt, homens e mulheres precisaram superar vários degraus de cultura
primitiva, baseada na desigualdade entre os homens e na tirania mais
bruta do Estado sobre os indivíduos, para compreender que era necessário
desenvolver uma relação de empatia de cada pessoa com toda a
humanidade, única forma de garantir que não se faça com o próximo
daquilo que não se deseja para si mesmo.
Hunt localiza o nascimento dessa ideia nos debates que deram origem à
Constituição dos Estados Unidos, de 1776, confirmada pela Declaração
dos Direitos do Homem da Revolução Francesa, de 1789. Foram decisões que
representaram um imenso progresso, lembra, ainda que tenham ocorridos
recuos graves, mais tarde, pois além da luta política, também havia uma
disputa cultural. Hunt está convencida de que, criando epopeias
românticas que envolviam heróis e heroínas de terras distantes, em
sociedades da Ásia ou da África, que cultivavam costumes vistos como
exóticos em Londres ou Paris, os noveleiros daquele tempo, que escreviam
folhetins publicados em sequência pelos jornais, cumpriram um papel
positivo no esforço para criar uma cultura de uma sociedade onde a
igualdade é um valor fundamental.
A experiência futura ensinou que, como a luta global pela democracia,
a defesa dos direitos humanos é um esforço que nunca termina. A
opressão da mulher prosseguiu pelos séculos seguintes, a escravidão
permaneceu como uma vergonha duradoura. A dominação de povos frágeis, do
ponto de vista econômico, é uma realidade até hoje. A tortura jamais
foi inteiramente abolida. Chegou a ser sistematizada pelo Exército
francês na guerra da Argélia, nos anos 1950. Empregada em
interrogatórios de prisioneiros na guerra do Vietnã, foi admitida por
decreto de George W Bush após o 11 de setembro, numa regressão cujo
maior exemplo é a prisão de homens sem direitos de Guantânamo. Há outros
exemplos, mas este é o espírito da coisa.
No Brasil, a igualdade está presente em todas as Constituições
escritas desde a independência. Mas foi na última, em 1988, que os
constituintes providenciaram um longo e detalhado artigo, número 5, onde
os direitos individuais são definidos de forma ampla e detalhada. Entre
várias providências essenciais, como a proteção absoluta a liberdade de
expressão e a proibição da censura, a Carta chamada “cidadã” pune a
tortura como crime imprescritível, inafiançável. A partir deste artigo,
que acertava contas com a ditadura de 1964, define-se, a começar pela
defesa da integridade do corpo humano, a supremacia dos direitos do
indivíduo frente ao Estado, que dá base para a noção de que todos são
inocentes até que se prove contrário.
Um dos pontos essenciais dessa visão universal foi estabelecida por
Voltaire, o mestre do iluminismo, para quem “é preferível um culpado
solto do que um inocente preso”.
Em setembro de 2016, o repúdio a uma medida truculenta e
desnecessária levou Moro a revogar o mandato contra Mantega, que, nos
governos Lula e Dilma, somou a mais longa permanência continua no posto
de Ministro da Fazenda em nossa história republicana.
Arrancar uma pessoa com endereço conhecido, que jamais se negou a
prestar esclarecimentos solicitados, da companhia de uma mulher que
desde 2011 luta de forma corajosa contra um câncer, não é apenas uma
medida desnecessária.
É um ataque a sua dignidade, que não pode ser esquartejada em praça pública.
Isso interessa a quem promove o espetáculo da honra ferida, da cidadania diminuída, quem sabe atemorizada.
É uma forma de colocar o interesse do Estado por cima dos direitos do
cidadão, quando seria perfeitamente compatibilizar uma coisa e outra.
A menos, claro, quando o show para a TV é a prioridade sobre todas as coisas.
Mesmo correta, a decisão de Moro não foi capaz de evitar um escândalo
numa Operação marcada por outras denúncias que envolvem a violação de
garantias constitucionais.
A primeira investigação, na pré-história da Lava Jato, envolveu um
grampo telefônico que violava o sigilo das conversas entre um cliente --
assessor do falecido deputado José Janene – e seu advogado, garantido
pela Constituição.
Quebrado por uma longa prisão preventiva, que incluía feriados sem
banho de sol e sem visitas familiares, previstos em lei, o diretor da
Petrobras Paulo Roberto Costa fez uma delação premiada que mudou o curso
de toda investigação.
Um ano mais tarde, o senador Delcidio do Amaral foi preso de forma
ilegal, pois um parlamentar só pode ser levado para a cadeia em caso de
flagrante, o que não era seu caso. Delcídio afirma que só decidiu falar
depois de ser mantido incomunicável numa cela sem luz da Polícia Federal
em Brasília, onde chegou a bater na porta pedindo por socorro mas não
foi atendido.
Muitas pessoas costumam assumir uma postura tolerante diante de atos
dessa natureza, com o argumento nocivo de que finalidades nobres podem
justificar o emprego métodos condenáveis.
A verdade é que, justamente porque vivemos numa sociedade onde os
homens têm direitos iguais, uma postura flexível diante dos ataques aos
direitos de determinados indivíduos cedo ou tarde cobra um preço muito
mais alto sobre o conjunto das instituições de governo. As prisões
preventivas sem motivação justificável, empregadas com a finalidade
óbvia de obter delações premiadas, são definidas como uma forma de
tortura por juristas à prova de qualquer suspeita pelas preferências
políticas dos acusados – e parece difícil encontrar, ao menos entre
pessoas capazes de empatia pelo sofrimento alheio, este traço peculiar
do aprendizado democrático segundo Lynn Hunt, quem conteste essa noção.
“Morra, terrorista” gritavam na rua para a guerrilheira Cida Costa,
no momento em que era conduzida à prisão, na década de 1970. A própria
Cida não foi executada, embora isso não fosse incomum, na época.
Da mesma forma que o choque elétrico e o pau de arara se tornaram
peça essencial na ditadura militar, num circo de horrores onde chefes de
tortura eram glorificados pelos jornais, promovidos e recebiam medalhas
em datas cívicas, é difícil negar que a tolerância e mesmo aplauso
diante de abusos e medidas de exceção da Lava Jato seja responsável pela
criação de um ambiente político de conivência que permitiu o golpe de
31 de agosto, numa trama que produziu o impeachment sem prova de Dilma
Rousseff, para dar posse a um sucessor envolvido nos mesmo crimes pelos
quais ela foi afastada – sem falar em práticas pelas quais a presidente
jamais foi acusada, inclusive uma condenação pela Justiça Eleitoral.
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